sábado, 25 de outubro de 2008

O Balcão (Jean Genet)


Quarta-feira passada assisti a uma peça de teatro na sala Qorpo Santo da UFRGS, a peça se chama "O Balcão" (Le Balcon - O terraço) do escritor francês Jean Genet. O Balcão DADiano me inspirou a escrever sobre, considerando-o uma boa adapção nos moldes abrasileirados e agauchados (se é que existe essa palavra), se fazem presentes quando uma das personagens "George" coloca o sotaque campeiro do gaúcho, esse personagens provoca boas risadas do público. Em uma das críticas que li sobre a peça, o autor comentava da simplicidade que as peças do DAD costumam ter, mostrando-se sempre com um mínimo de cenário e que isso torna esse teatro pobre. Pois aí é que está o que considero mais interessante, é que mesmo de forma simples, seja por falta de cenário, os atores conseguem sustentar de forma sublime a peça, com muito movimento, técnica vocal e corporal...


O Balcão
de Jean Genet
Para iludir-se, às vezes basta a Realidade. E é por isso que a casa de Ilusões de Madame Irma estará mais uma vez com as suas portas abertas! O TPE apresenta o espetáculo O BALCÃO, de Jean Genet. Serão dez seções apresentadas gratuitamente durante as quartas feiras de mês de outubro, às 12:30 e às 19:30.Ambientada no clima de uma partida de improvisação entre dois times de prostitutas, O BALCÃO explora a metateatralidade da obra de Jean Genet, evidenciando as múltiplas representações existentes no texto. As prostitutas desmembram-se em diversos personagens com o objetivo de remontar a Casa de Ilusões de Madame Irma, em uma disputa onde os papéis existentes em nossa sociedade são revistos e expostos em sua fragilidade, questionando o público sobre o verdadeiro limite entre realidade e ficção.
Além do espetáculo, será promovido, no dia 29 de outubro, o debate GENET E SUA MANIFESTAÇAO NA CENA ATUAL, com a presença do professor Flávio Mainieri, do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, e com o elenco do espetáculo. Todas as atividades são gratuitas e abertas ao público em geral.

Um Risco no Céu


Hoje nos Histórias Curtas da RBS (longe de mim fazer propaganda da emissora rsrsrs, mas o programa foi bacana!) passou um documentário chamado "Um Risco No Céu", sobre a trajetória musical de Carlinhos Hartlieb. Talvez muitos de vocês não conheçam essa figura que nos idos de 75, 76, surgiu na Porto Alegre cultural da época. Carlinhos misturava com primordial competência teatro e música. Em 1978 junto com Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro e outros músicos gaúchos montaram o show chamado Paralelo 30 (que inclusive foi lançado em CD em 2001 ou 2002, não lembro...). Já em 1983 Carlinhos montou o show "Um Risco no Céu", e que após tentou patrocínio de gravadoras para lançar o disco, o que acabou não acontecendo. Em janeiro de 1984, Carlinhos foi encontrado morto em sua casa num morro da Praia do Rosa/SC. O mistério por trás dessa morte até hoje paira.


Mas, toda essa história é para deixá-los curiosos e com o intuito maior de incitá-los a procurar e ouvir o Carlinhos Hartlieb "Um Risco no Céu"...abaixo uma letra de uma das tantas músicas de Carlinhos...


Como O Vento Sul

Chego como o vento sul

Mudando o ânimo geral

Acendendo o brasileiro da paixão

Fazendo cruzar nos ares

A procura dos novos olhares

Chego desfazendo laços

Armados de maneira descuidada

Seco e cortante, penetrante

Sacudindo a roupa toda no varal

Chego como o vento sul

Que traz consigo gritos

E lamentos dos sofridos

Dos amores perseguidos

Dos caminhos que cruzam

O campo da vida

Em todas as direções

Chego como quem parou para descansar

E segue adiante

Recolhendo um pouco do momento

E assim se alimentando

A cada instante

Do gesto e do sentimento

Chegou como o vento sul

Cordial e decidido

Verdadeiro no seu rumo

Que apontaPro desconhecido

Chego o vento sul

Chego o vento sul

Sapatos em Copacabana





Caminharei os meus sapatos em Copacabana

Atrás de livro algum pra ler no fim de semana

Exercitar aquela velha ótica sartreana

Vendo o maxixe falso da falsa loira falsa bacana

O mendigo ensaia o passo lento um carro avança

Sei que não tenho idade

Sei que não tenho nome

Só minha juventude

O que não é nada mal

(escreverei os meus sapatos na tua idéia

escreverei os meus sapatos na tua postura

escreverei os meus sapatos na tua cara

escreverei os meus sapatos no teu verbo

escreverei os meus sapatos nos teus

Copacabana)

Regressarei os meus sapatos por Copacabana

Na mão direita o sangue de uma história italiana

Escorregar um tango numa casca de banana

Quando cair só vou lembrar da tua risada sacana

O polícia esquece a mão suspensa um carro avança

Sei que não tenho idade

Sei que não tenho nome

Só minha juventude

O que não é nada mal

(as negras pupilas do verso dilatam)

(os automóveis jorram de um piano)

(as negras pupilas do verso dilatam)

(os automóveis jorram de um piano)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

"The Fairest Of The Seasons" (A mais leal das estações)


Agora que é hora
Agora que o ponteiro aterrizou no fim
Agora que é real
Agora que os sonhos deram tudo que eles tinha que emprestar
Eu quero saber se eu fico ou eu vou
E talvez tento outra vez
E eu realmente tenho uma mão no meu esquecimento?
Agora que eu tentei
Agora que eu finalmente descobri que este não é o caminho
Agora que eu viro
Agora que eu sinto que é hora de passar a noite fora
Eu quero saber se eu fico ou eu vou
E talvez finalmente divido a rima
E eu realmente entendo oque está por debaixo?
Sim e a manhã me teve
Olhando nos seus olhos
E vendo os meus me avisando
Para ler os sinais cuidadosamente
Agora que é luz
Agora que a vela está caindo mais pequena na minha mente
Agora que está aqui
Agora que eu quase estou não tão distante
Eu quero saber se eu fico ou eu vou
E talvez sigo outro sinal
E eu realmente tenho uma canção em que eu possa andar?
Agora que eu posso
Agora que é fácil, sempre fácil inteiramente
Agora que estou aqui
Agora que estou caindo à luz do sol e à uma música
Eu quero saber se eu fico ou eu vou
E eu tenho que fazer apenas um
E eu posso escolher de novo se eu devo perder a razão?
Sim e a manhã me teve
Olhando nos seus olhos
E vendo os meus me avisando
Para ler os sinais cuidadosamente
Agora que eu sorrio
Agora que estou rindo ainda mais no fundo do coração
Agora que eu vejo
Agora que eu finalmente descobri a coisa que negava
É agora que eu sei se eu fico ou eu vou
E é finalmente que eu decido
Que estarei partindo
Na mais leal das estações

Nico (Cantora Alemã), 1967

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Berenice



O infortúnio é múltiplo. A infelicidade na terra tem
muitas formas. Dominando o amplo e curvo horizonte, seus
matizes são vários como os vários matizes de cores do
arco-íris – e igualmente distintos, ainda que numa
gradação toda particular. Dominando o amplo horizonte
como o arco-íris! Por que fui derivar da beleza algo tão
atroz? Da promessa de paz tal símile de tristeza? Mas se,
na Ética, o mal é uma conseqüência do bem, então, de
fato, a tristeza se origina da alegria. Assim como a
memória da felicidade passada é a angústia de hoje, ou os
tormentos atuais são frutos dos êxtases que uma vez
existiram.

Edgar Alan poe

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Comecei na segunda e terminei na terça



Lunes, miércoles...
Se eu pudesse atingir teus olhos
com dois botões coloridos,
a minha imagem, te seria proibida.
Assim, ficaria mais fácil inserir a tua vida dentro do meu espaço imaginário,
e depois, sair livremente,
sem risco nenhum deste estranho pensamento dar certo.
Sair-partir-fugir dentro daquele trem azul
que passa logo ali detrás do edifício musgo.
Sair na segunda-feira e só voltar na terça!
Ou quem sabe de tardezinha viajar nas asas transparentes
de uma ave amarela,
que pensa que me engana,
se fazendo passar por um anjo de longos cabelos loiros...
...pensando bem,
acho que tenho um “Q” de metódiQa,
e um Tesão de lunáTica!
(“Pero no mucho!!!”)
Joana Porto (Quarto 322, 26 Agosto/2003 - CEU numa noite estranha)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Inverno (Porto Alegre, Julho de 1983)


As cores da vitrine da Falks me feriam os olhos. Eu nunca seria capaz de gostar de alguém que usasse calça cor de rosa e casaco lilás. Os livros da Kosmos também me pareceram novos demais e com capas muito coloridas. Talvez porque eu estivesse pensando no "Ulisses" de capa marrom que eu tinha encomendado e que ainda não chegou. Entrei na galeria Chaves com a certeza de não comprar nada. A não ser que algum disco novo do Pink Floyd aparecesse na King's. Como sempre não tava lá. HERÓI: (V.O.): Recomeçou a chover e o centro se encheu de guarda-chuvas e pessoas que caminhavam ao abrigo dos nomes das lojas. O marrom persistiu como um cobertor de lã estendido sobre os edifícios. Escuro no boné do vendedor de revistas, discreto no granito molhado e castanho nos olhos e nos cabelos da guria descendo a Rua da Praia.


Carlos Gerbase

Natureza Viva


Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas, infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data, maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.No silêncio que se faria, pensas, precisarás fazer alguma coisa, como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas talvez não faças nada, porque ele continuará te olhando com seus olhos vazios, no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de um tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas. Mas nesse silêncio que certamente se fará, talvez acendas mais um cigarro, e com a seca boca cerrada, sem nenhum sorriso, evitarias o mergulho para não correres o risco de encontrar uma fera adormecida. Teu coração baterá fortemente, sem que ninguém escute, e por um momento talvez imaginas que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo, como se assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas, em vão, descobrir também nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível de tão clara.Nítida luz que ele não vê, esse outro sentado a teu lado na sala levemente escurecida, onde os sons externos mal penetram, como se estivessem os dois presos dentro de uma bolha de ar, de tempo, de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco mais de vinho para que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá de encontro a essa claridade que tentas, precário, transformar em palavras luminosas para ofender a ele. Que nada, diz, e nada dirás, e sem saber por quê pensas um extenso corredor escuro onde tateias, feito cego, as mãos estendidas para o vazio, pressentindo o nada, que tu mesmo prepararias agora, suicida meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis, pobre coisa sedenta, te feres, exigindo o poço alheio para matar tua sede indivisível.Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala, mas o caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um cigarro aceso na mão direita, um cálice cheio de vinho na mão esquerda. A presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo nem conhecê-lo, que o aceitas assim latejando amigo velo remoto, completamente independente de tua vontade, te todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejerás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna.Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que tá tento tempo supões, até que as palma famintas de tuas mãos tenham percorrido todos os caminhos, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenha transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, peças brancas de roupa cintilando, jogadas ao chão. Desejá-lo assim, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele, vezenquando, sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito adormecido, quem sabe dessa luz oculta, é então que sentes claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, essa coisa, o outro, que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que começaste.Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de tu próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos.Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de apagar a luz mais forte. E começas a falar.(Caio Fernando Abreu - Natureza Viva)

terça-feira, 5 de agosto de 2008




uma mulher sozinha no apartamento.
no frio do carpete sujo, que aquece os pés,
nua. completamente nua, sentada, olhos que se evolam
pelas paredes, vitrais do quarto.
o computador faz ruídos, às vezes.
é esquia e magra: vazia, é tia, avó, irmã, sem nexo.
está nua e só frente às máquinas.
não há faunos! Florestas
foram concatenadas no seu pensamento.
em que pensa uma mulher sem cajados,
sem vestido branco,
na brancura da pele lisa?
seria mais de meia-noite, haveria livros pelo chão,
todos abertos:
ela abre a página, mói o livro, joga o livro
e vem sentar-te ao meu lado, Lídia,
ela vigia o branco pelos espaços de folhas
entre linhas tão correlacionadas,
ela saboreia relações, depois: joga.
joga fora, no chão acarpetado do apartamento, joga e ri.
e vem sentar-te à minha frente, Lídia,
não sou tão máquina que não possa causar
no teu ventre
um espasmo cheio de palavras.


Telma Scherer, Desconjunto, p.92.

Alcoólicas


É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
(Alcoólicas - I)

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
(Alcoólicas - II)

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
(Alcoólicas - IV)

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
(Alcoólicas - V)


HILDA HILST

O Poema do Amigo


Estranhamente esverdeado e fosfóreo,
Que de vezes já o encontrei, em escusos bares submarinos,
O meu calado cúmplice!
Teríamos assassinado juntos a mesma datilógrafa?

Encerráramos um anjo do Senhor nalgum escuro calabouço?
Éramos necrófilosOu poetas?
E aquele segredo sentava-se ali entre nós todo o tempo,
Como um convidado de máscara.
E nós bebíamos lentamente a ver se recordávamos...
E através das vidraças olhávamos os peixes maravilhosos e terríveis cujas complicadas formas eram tão difíceis de
compreender como os nomes com que os catalogara Marcus Gregorovius na sua monumental Fauna Abyssalis.
[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]